Como nós falhamos em proteger Kesha


Qual o valor de uma mulher? Qual o valor do seu corpo, sua segurança, seu coração, sua carreira? E uma vez que você determina esse valor, como ele se compara ao valor de um homem, um negócio, uma conglomeração? Ou não se compara nem um pouco?

No dia 19 de fevereiro, uma juíza da Suprema Corte de Nova York determinou que a cantora Kesha deve permanecer contratualmente ligada à Sony e à Kemosabe, a gravadora criada e comandada por Dr. Luke (nome real  Lukasz Sebastian Gottwald), produtor que ela alega tê-la drogado e estuprado quando ela tinha 18 anos e que continuou a abusar dela ao longo da parceria criativa dos dois.

A juíza Shirley Kornreich ouviu o pedido de Kesha por uma liminar que a permitiria gravar fora do alcance do Dr. Luke, como um pedido não por segurança física, psicológica e sexual mas como um pedido para "dizimar um contrato que foi densamente negociado e típico para a indústria", como pontuou Kornreich.

O pedido de ação de Kesha dizia, em parte: "Eu sei que eu não posso trabalhar com Dr. Luke. Eu fisicamente não posso. Eu não me sinto segura de forma alguma". Mas essa clara declaração de absoluta necessidade não importa. Legalmente, nos olhos da moral da corte, é o contrato - a corporação - que vem em primeiro lugar.

É espantoso, mas não é nenhuma ruptura da tradição. A Suprema Corte dos EUA já determinou que corporações tem direitos similares aos de pessoas, todavia se você olhar de perto, você descobrirá que os direitos dessas corporações são bem mais invejáveis - especialmente quando comparado aos daquelas como nós que foram legalmente amaldiçoadas com corpos femininos e vozes femininas, que foram feitos para serem suaves e agradáveis. O dinheiro fala mais alto do que você ou eu jamais poderíamos em uma corte, mesmo se nós fôssemos estrelas pop cujos fãs esperaram do lado de fora por horas para dar apoio; os interesses corporativos são mais ruidosos que a ética ou empatia, mais importantes que autonomia, ou livre arbítrio, ou direitos básicos à segurança.

Kesha, uma mulher de 28 anos que tem trabalhado na indústria da música por uma década, pode pensar que sabe o que é melhor para ela. Ela pode pensar que é de seu melhor interesse cortar todas as amarras do homem que alegadamente estuprou e continuamente a prejudicou, mas - sério - o que ela sabe? A Sony investiu 60 milhões de dólares em sua carreira, lembraram os advogados deles à juíza - o que é uma violação moral e física comparado a isso?

"Nosso interesse é no sucesso dela", afirmou um advogado da Sony. "Nosso interesse é no sucesso de Dr. Luke. Eles não são nem um pouco mutuamente excludentes". Em outras palavras, nós sabemos o que é melhor para ela. E o que é bom para ela é gravar mais seis álbuns com uma companhia que ouviu as suas alegações de abuso e disse "sua história não significa nada".

Que a Sony tenha tomado essa linha de argumento é nojento o suficiente, porém mais nojento ainda é o fato que a corte concorda.

"Meu instinto é fazer o que é comercialmente sensato", declarava Shirley Kornreich enquanto Kesha abertamente soluçava de chorar no fundo da sala.

Comercialmente sensato, sim. Contratos foram assinados. Kesha entrou em um acordo legal com a Sony e a Kemosabe. Porém, o Dr. Luke tem uma obrigação legal de não estuprar ou machucar ninguém, mesmo quando esse alguém é uma jovem mulher que tenha sido colocada sob seu controle legal e criativo.

Quando uma violação contratual e uma violação humana são colocadas lado a lado em uma corte, um idealista pensaria que a segurança de um ser humano tem prioridade.  Um realista, no entanto, saberia melhor. A indústria musical, como muitas outras indústrias, está predisposta a favorecer sua própria segurança: o que é "comercialmente sensato" para a Sony pode frequentemente estar em desacordo - em mais casos além do de Kesha - com o bem-estar das mulheres que assinam o contrato.

Parte da argumentação da juíza Kornreich em negar a liminar foi que a Sony concordou em manter o trabalho de Kesha separado do de Dr. Luke. Mas ela ainda mantém contrato com a  gravadora dele, e o trabalho dela ainda pertence a ele. Ela permanece sendo a propriedade criativa do homem que ela afirma tê-la estuprado. A decisão é tão cruel que parece até mitológica - Perséfone ficou presa no inferno como resultado de um contrato ruim - mas não é; a decisão é real.

É provável que "comercialmente sensato" vá quase sempre superar o "eticamente sensato" e certamente superar o "moralmente sensato". Nossas cortes e cultura já tem dificuldade suficiente em acreditar nas acusações de abuso sexual feitas por mulheres nas circunstâncias mais claras possíveis, então que chance nós temos de proteção legal, emocional e física quando detalhes são contestados e uma corporação corre o risco de perder milhões? Quando uma mulher poderosa e do status de Kesha não pode ganhar, o resto de nós têm menos chances ainda.

Lembre-se: eles sabem o que é melhor para nós.

* Artigo originalmente publicado no site Jezebel, traduzido por Franciely Dutra e Caroline Silva.

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